Foi estranho porque ela chegou do
nada. O que não é bem verdade porque, pensando bem, ela sempre esteve ali.
Nós trocamos olhares e cumprimentos
no período de alguns meses. E eu até cheguei à deselegância de precisar pedir alguma coisa. É mesmo...
Nada mais do que isso. Mas tudo bem.
Mesmo. Ela não era ninguém importante. Até ser.
Não me pergunte especificamente
quando e como ou sequer porquê ela apareceu. Quero dizer, quando ela se materializou
para mim. Na verdade, o que eu quero dizer é: quando meus olhos passaram a
vê-la.
Quando meus olhos perceberam sua
existência deliciosamente intrigante. Como algo milagroso que sabe se retirar
na hora certa e deixar aquele restinho de incêndio para queimar até a próxima
aparição, sabe?
Bem. É como eu me sinto desde
então. Desde que meus olhos passaram a vê-la. Desde que eu percebi que os olhos
dela me veem. Eu nem sabia que minha autoestima, reles e mortal, estava capenga quando percebi
que pensava que ela jamais veria a mim. Mas viu. E via. Há meses.
Ela não disse assim, na minha cara,
pra eu ter certeza. Porque ela não é dessas mulheres que quer você tenha
certeza sobre ela. Ela precisa daquela margem de erro, sabe, pra poder sair
pela tangente como se nunca tivesse havido interesse. Ou simplesmente pra te dar
a chance de exercitar a fé. Enfim. O que importa é que ela me deixou saber que
ela me via. E talvez me visse antes mesmo de eu vê-la.
Embora ela tenha jeito dessas
mulheres que vê bastante pessoas. O que posso dizer? Eu também gosto de ver pessoas.
Mas houve um certo deleite em ser
vista por ela. Como há em tudo aquilo que acontece sem a gente cogitar antes o acontecer.
Entenda: não é que antes eu pensasse
nela como alguém que jamais pensaria em mim. Eu simplesmente não pensava.
Durante suas aparições, aquelas que
mencionei mais cedo, reconheço que eu era até um pouco apática. Porque não parecia
ser algo no que eu devesse inutilmente gastar minha energia.
E talvez tenha sido esse o pulo do
gato.
Não. Eu não fingi desinteresse pra ela
se interessar. Quantos anos você acha que eu tenho? E outra: ela não é esse bezerro
de ouro rosa cravejado de diamantes negros que você insinua ao me indagar assim.
Veja bem, ela, por definição, é a manifestação de pragas que eu pessoalmente
não escolheria se estivesse folheando um menu no restaurante. Ela está mais
para aquela torta doce que a confeiteira não vende em pedaços e que, por isso, eu não compraria inteira até ter um bom motivo.
O que eu realmente quero dizer é
que foi natural. Ah, é isso que eu quero dizer. Foi natural. Simplesmente, num
determinado momento nos encontramos. Mais do que estar no mesmo lugar, como já
havíamos estado antes: nos encontramos.
Talvez habitando o mesmo estado
psicológico de interesse desinteressado (é como eu vejo meu interesse sobre as
coisas e pessoas nos últimos meses. Eu quero, mas se não rolar, eu sei que não
vou morrer, e de quebra mantenho espaço livre pra chegar coisa melhor).
Vivo bem assim e penso que ela
também. Não sei se bem ou mal, mas quero dizer que me parece que ela viva assim
também. Interesse desinteressado é como vou chamar.
Num dia ensolarado de inverno – sim,
que belo prêmio – nós nos beijamos. Não
houve nervosismo, não houve hesitação. Ela sabia que eu faria e algo de mim sabia
que ela esperava por isso. Não exatamente como se ela me desejasse, mas mais
como se pensasse que merecesse ser beijada. Mais como se pensasse que eu seria
louca de não toma-la pra mim.
E eu não seria mesmo.
Você não seria capaz de mensurar a
maciez da pele dela. Enquanto eu afastava seus cabelos e beijava suavemente sua
nuca, seu pescoço, eu não podia pensar em nada disso porque seria loucura não estar
cem por cento presente. Mas depois. Depois eu me acometi do grau de prazer material que
o toque da pele dela na minha me dava. Quando nossos lábios se tocaram, foi uma
espécie de centelha. E essa faísca incendiou o meu corpo.
Eu a desejei como se estivesse possuída
por alguma entidade que em outros tempos foi terrena e bem sabia dos prazeres daqui.
Eu a queria toda. Cada pedacinho dela. E por todo o tempo quanto fosse possível mantê-la
neste plano.
A partir daí fazia toda diferença tê-la
ou não. Não era como se coisa melhor pudesse se manifestar.
Eu deslizei minhas mãos
delicadamente sobre ela, e não porque frágil ou por não querer senti-la vigorosamente. Mas
porque divina. Divina demais para eu invadi-la com a minha humanidade. Eu quis
mantê-la deusa tal como se manifestava para os meus olhos.
Para que eu pudesse continuar
adorando a majestade do seu corpo como uma revelação sobrenatural me entregue
apenas em delírio e jamais consumada em vida.
Por isso, eu acordei. E a deixei
morar em meus sonhos.