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terça-feira, 14 de agosto de 2018

Proposal

Eu não sei mais. Quanto tempo faz que a desejo vigorosamente em minha cama satisfazendo e tendo satisfeitas as necessidades carnais mais absurdas. Mas é assim, e já há tanto tempo que não sei dizer. 

Eu a vejo quando chegamos e a sigo com os olhos quando nos despedimos. Deus sabe lá por que, mas nossos caminhos nunca se cruzaram nem coincidiram. Então, nunca pude acompanha-la ou puxar qualquer assunto.

Ela me cumprimenta com um beijo no rosto. Mas seus olhos, ah, seus olhos me alcançam muito antes dos seus lábios. Eles me laçam, me arrebatam e, até que sua boca me beije as bochechas, o amasso que travo com seu olhar é algo erótico. Para mim, é claro. Ela está inocentemente sorrindo para mim com aqueles olhos brilhantes. Chega a parecer um desenho animado japonês, com aqueles belos olhos pretos e brilhantes. Eu tenho pra mim que eles não brilham para mim. Quantas vezes não ouvi as pessoas elogiando seus olhos...

Eu não sei por quanto tempo a amo. Sim, eu a amo. Não lembro também quando decidi que a amo. Mas me pareceu que esse sentimento combinava melhor com o que eu sentia – sinto! Melhor do que encantamento, fascínio, atração, queda. Eu estou apaixonada por esse par de olhos.

E eles me veem. Me tocam antes dos lábios. E os lábios me dizem: nossa, como você está bem! Está linda! O que fez de diferente?

Eu acho que me fundo pra dentro de mim quando ouço esses elogios. Eu não sei o que fazer com eles. Onde guardo essas palavras pra me deleitar com elas daqui a cem anos? 

Eu apenas sorrio de canto. E a olho no ímpeto de descobrir o que esses elogios querem dizer. Será que me dizem apenas o que falam ou querem dizer algo que somente eu entenda?

Se for alguma espécie de brincadeira, é muito de mau gosto. Porque eu estou caindo como um pato. Semana a semana, eu a encontro e meu coração se espreme todo, sinto que fica vermelho, enrubescido de vergonha.

Eu me naufrago na expectativa de um dia ela acordar louca e me beijar na boca quando me encontrar. Nessa fantasia, eu a beijo descontroladamente dando tudo o que estou represando no peito. Na verdade, sei que se ela me beijasse, eu a chamaria de louca e daria as costas.

Eu definitivamente não estou preparada pra ver meu sonho mais íntimo tomando forma diante de meus olhos.

É absurdo. 

Eu a desejo, eu a amo, eu a odeio quando sorri com aqueles olhos de anime pra todo e qualquer um que cruze o seu caminho. Ela é esse tipo de pessoa encantadora que está disposta a exalar amor para desconhecidos como quem exala feromônios.

Eu a detesto por isso. Porque uma parte obcecada e psicopata de mim a deseja veementemente só pra mim. Tem vezes que deliro que a sequestro e ela adora... 

Hoje de manhã acordei e me lembrei do sonho que tive com ela e confesso que considerei nem levantar da cama. Eu devo ser alguma espécie de monstro que arrisca a incolumidade pública. As autoridades me prenderiam se soubessem quanto eu quero essa mulher.

Eu jamais a machucaria. Se ela pedisse, talvez. Uns belos tapas costumam deixa-la ainda mais descontrolada nos meus sonhos.

Mas eu levantei. 

Nos encontramos, e sucederam os olhos, os lábios que laçam, meu sorriso torto, o coração espremido, minhas fantasias sexuais de armário e, por fim, um indescritivelmente inesperado convite pro café.

Pela first fucking time, os olhos me olhavam com olhos individuais. Quase como se tivessem sido arrancados da órbita craniana pra olhar pra mim, só pra mim. Pra me ver, pra me enxergar, pra me cercar. 

O milagre em cascata foi quando ela elogiou meu sorriso. Não é que eu estava “bem” ou “linda” nem nada tão genérico que ela precisasse transferir a resposta ao me perguntar o que eu fiz de diferente. Não. Meu sorriso era lindo. 

Eu aceitei o café. E sem meia explicação, ali estávamos nós trocando confidências e visões de vida como se já conversássemos por telefone madrugadas a fio.

Ela me conhecia. Por alguma razão cósmica, ela entendia o que eu dizia e nos dávamos estranhamente bem. Ela tinha anseios e desejos tão profundos sobre a vida, ou simplesmente tão bonitos, que ainda que eu não os tivesse, teria. Pelo deleite de acompanha-la, de tê-la. 

Aqui, sentada na minha frente, gesticulando quase nada enquanto fala, seu cheiro é acessível, quase nada onírico e, mesmo assim, eu pularia em cima de você sem nenhum esforço.

Nos beijamos. 

Foi estarrecedor. Como a harmonia universal que há quando duas peças opostas se encontram e encaixam depressão e relevo: sem esforços, sem falhas, sem os excessos do forçado. Simples como o natural.  

Nem em um milhão de anos o sexo dos meus sonhos chegaria aos pés do que fizemos minha cama passar. E talvez fosse necessário alguns milênios sonhando com ela pra imaginar o grau de sadomasoquismo ao qual ela estava disposta. 

Em alguns meses nos apaixonamos. 

Ela invadiu o porta-retratos da minha cabeceira de cama. Apareceu dentro da minha carteira, numa foto linda de morrer que me encara toda vez que vou pagar alguma coisa – e acho que passei a gastar mais depois disso. De repente, era ela ocupando a imagem de fundo do meu celular e, por mais cafona que pareça, do meu computador também. 

Eu estava irremediavelmente apaixonada e disposta a ir às últimas consequências desse estado mental virulento chamado paixão.

Em alguns meses, passamos a dormir juntas todas as noites. 

Em mais alguns, eu me desfiz de todas as lembranças de amores antigos. 

Eu estava pronta pra concluir essa área da minha vida. E não havia razão para não estar. 

Era tão incrível como nada que eu fosse capaz de sonhar na vida.

Era um domingo de sol quando acordamos às 11h da manhã. Nossos corpos completamente nus ainda se entretocavam e a consciência que se aproximava com o despertar trazia o contentamento de perceber a presença uma da outra.

Eu me levantei e caminhei plena de paz até o banheiro. Me olhei no espelho, esperando possivelmente encontrar uma mulher destruída pelo sexo animal noturno e tudo que vi foi um sorriso ridículo impregnado no meu rosto. Nada muito largo, mas notadamente lá. Me fez perguntar por onde andaria aquele outro, torto e de canto, que eu já não via há meses.

Estávamos na mesa, o café posto, o apetite tinindo, quando ela perguntou. 

De pronto, eu achei tão absurdo que pensei que fosse alguma piada, razão pela qual eu tratei logo de rir. Até perceber que não. Era sério. Era uma pergunta séria, uma proposta intencional e enviesada. Ela realmente queria saber.

Eu me arroguei da gravidade daquilo tudo e respondi que não. Mas é claro que não!

Os olhos dela não me entendiam, me olhavam como se eu fosse algum tipo de extraterrestre, como eu poderia não querer, afinal?

Eu disse que não. E que não era algo negociável. Que, aliás, era o maior terrorismo que ela poderia me fazer num domingo pela manhã. 

Foi como se alguém arrancasse o chão dos meus pés, porque de um instante para o outro não havia nada em que eu pudesse me agarrar.

Eu poderia ter dito que tudo bem. Eu poderia ter engolido seco, jogado um café preto em cima e ter ido correr no parque para aliviar a tensão que impregnou o ar. 

Mas é claro que eu não fiz nada disso. Ainda hoje eu não acredito que ela considerou me pedir uma coisa dessas.

Eu pedi que ela fosse embora. E pedi que levasse suas coisas.  

Ela poderia ter resistido, desistido do impropério e até fingido que não era o que ela quis dizer. Melhor do que isso, ela poderia ter implorado pelo meu perdão, mudado de ideia e lutado pra me convencer de que ainda era alguma coisa com valor pra mim.

Mas isso não seria muito diferente de se vender, não é mesmo? 

Ela pegou o que pôde e deixou para trás o que não lhe importava. 

Nunca mais nos vimos, nunca mais nos falamos.