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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Vida

Eu bati a porta como quem sai furioso. Não sabia quando a veria de novo. E minha fúria era propriamente esta. Como seguiria a vida vivendo a milhares de quilômetros da minha? Não sei. 

O estampido da porta batendo como o tiro que dilacerou a última linha do nosso laço ficou ressoando enquanto eu caminhava para longe.

Depois disso, tudo pareceu correr numa velocidade estranha. Eu, como mero espectador da minha própria vida, me vi pegando mala, itens pessoais de valor sentimental e transportando tudo pra outro continente. O adeus à porta do táxi buzinando, o aeroporto ficando maior enquanto eu deixava tudo para trás, o ar condicionado gelado do avião, as horas intermináveis de voo em que dormi e acordei repetidas vezes como que dentro de um pesadelo. Por fim, cheguei.

O clima era agradável, ok. E, a princípio, não tive chances de continuar expectando minha vida como que de fora, porque precisava interagir. Um rosto familiar – malemá conhecido – emergiu por meio da multidão que aguardava o desembarque dos voos internacionais; e era como se me visse de cima. Para mim, foi mesmo como não ver ninguém. Como uma pessoa poderia ser alguém se a vida tinha ficado para trás? Acenei de cabeça, sorrindo automático. Até hoje não estou bem certo de que não revirei os olhos inevitavelmente por de trás dos óculos escuros.

Daí tudo se passou tão rápido como a vida costuma ser quando você não a está vivendo em presença. Organizei minha vida do dia para a noite. Literalmente, porque o primeiro dia era logo o seguinte.

Naturalmente, não me cabe objetar suas questões de agora sobre minha realização e como tudo foi uma escolha consciente. Mas eu simplesmente não era visto. As pessoas passavam por mim e não era realmente como se nos tocássemos. Claro. Um de nós não estava realmente ali para ser alcançado.

Acordei, estudei, trabalhei e dormi por muitos dias. Bebi tantos vinhos olhando para o céu azul das 22h no Mediterrâneo quantos meu paladar foi capaz de receber antes de criar taninos próprios. Nenhum tão bom quanto os que em vida.

Agora me parece ligeiramente sinistro falar assim como se agora tivesse morrido. É que eu conheci uma vida e desde aquela porta nada mais se pareceu com isso...

A santidade nunca me caiu bem. Penso, inclusive, que foi como fiz para sobreviver – não exclusivamente agora; sempre. Daí o instinto de estar não com uma, mas outras pessoas. Às vezes ao mesmo tempo, porque não me tomava nada. Noutras, apenas durante o mesmo período. Mas quando tudo parecia ir bem, o barulho da porta batendo pela manhã me transportava imediatamente aonde. Degustei o tanino do vinho apurando em outras bocas, mas, por fim, nunca consegui ir além da carne. 

Aos poucos, cada passo à frente tomava mais claramente a feição de um resgate do que renunciei para estar ali. Toda tentativa de me restabelecer manhã à fora transfigurava-se numa repuxada violenta de nostalgia e saudade bruta quando a noite tardiamente caía.

Eu precisava ir embora.

Quando isso me ocorreu pela primeira vez tomou-me de forma tão sorrateira que sequer surtei com o impropério. Mais tarde, quando me dei por mim, já comentava em voz alta a intenção com colegas que, por alguma razão sombria, não notavam que eu já estava morto. Como a ideia de viver poderia lhes parecer tão absurda? Comecei a questionar internamente suas intenções sem me determinar em nada. Àquela altura, não ouvir o que me diziam as pessoas me parecia natural ante a decomposição gradativa do meu corpo. Para que serviriam os ouvidos ante a falência irreversível de uso do meu coração?

Alguém deve ter ficado muito preocupado com esse papo necrótico quando, a pretexto de me animar, aceitei um convite de vinho branco à praia – apelativo, convenhamos. 

Estávamos num trem em direção à Tortosa quando começamos a contornar o mar. Pelas razões mais óbvias, não culpo o autor do convite. Como saberia, afinal, que exatamente neste momento eu terminaria de morrer? 

O sol cintilava a água de um azul quase escuro enquanto dentro de mim tudo se apagou. Senti pequenas reações elétricas salteando meu corpo e algumas manchas brancas despontaram à frente de meus olhos. O sol e o mar continuavam lá fora. Me encaravam, reunidos nesta cena, numa expressão limítrofe entre o deboche e a descrença em mim. Um arrepio atravessou minhas costas quando o que parecia ser o último ar da Terra debandou de meus pulmões. Os quadros da praia percorrendo as janelas à medida em que o trem avançava. E cada vez mais rápido até que tudo se apagasse do lado de fora também.

Agora sentado nos bancos de alguma estação de trem no meio da Espanha, cercado de pessoas que até hoje não sei quem são, eu apenas disse que precisava ir. 

Agora era de precisar, você entende? O ar havia voltado e, por ora, cooperava entrando e saindo de meus pulmões como peristáltico que deveria ser. Mas até quando? Me parecia a última chamada. Precisei, em morte, morrer por uma segunda vez para entender o que sabia desde que comecei a narrativa. Isto não era vida. Se era para alguém, não era para mim. 

Por alguma razão, desfazer tudo e partir de uma hora para a outra parecia muito mais complicado do que chegar e começar de um dia para o outro. Por isso, simplesmente peguei uma blusa para o voo gelado e parti. Não conseguia recordar ou me determinar pelas consequências do que viria a ser considerado um abandono. Pois bem, para abandonar é preciso estar vivo. E assim preferi. A vida.